Estamos vivendo em um mundo de inovações tecnológicas que abrem caminhos para expandir a produção de alimentos e aumentam expectativas para solucionar os problemas relacionados à segurança alimentar global.
De fato, sabemos o quanto a tecnologia tem contribuído para a sustentabilidade da produção agrícola e para o meio ambiente. Mas não podemos deixar de lado a importância de sistemas agrícolas tradicionais, pois eles são considerados parte do patrimônio global e contribuem substancialmente com a subsistência de comunidades locais.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) reconhece esses diferentes tipos de agricultura que são denominados pela organização como Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM) ou “GIAHS”, sigla do inglês Globally Important Agricultural Heritage Systems.
Proteger esses sistemas faz parte do desenvolvimento sustentável
Nos últimos anos, as diferentes atividades e processos têm colocado esses sistemas tradicionais em risco, ameaçando a diversidade biológica, agrícola e cultural do setor agrícola.
Assim, o SIPAM tem como objetivo o reconhecimento de patrimônios agroalimentares a nível global, repercutindo sua importância para a segurança alimentar e nutricional, para a conservação e promoção da agrobiodiversidade e para a diversidade sociocultural.
O reconhecimento via FAO tem a competência de promover, ainda, agregação de valor a seus produtos e serviços de forma a gerar renda para as comunidades rurais e para as regiões onde estão situadas. Atualmente, 62 sítios SIPAM já foram reconhecidos em 22 países distribuídos em 5 continentes.
Com isso, a organização ajuda a preservar o patrimônio agrícola que protege a biodiversidade essencial ao nosso meio ambiente e proporciona meios de subsistência para as comunidades rurais. Sem contar que a transmissão de conhecimento nessas comunidades tem sido essencial para garantir a subsistência, além de conservar e preservar a biodiversidade essencial para o planeta como um todo.
Podemos atribuir iniciativas e práticas atreladas a esses sistemas ao ODS2 (fome zero e agricultura sustentável) e ao ODS 15 onde objetiva-se proteger, restaurar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, travar e reverter a degradação dos solos e travar a perda da biodiversidade.
Agrobiodiversidade e valores culturais são requisitos para esses sistemas
Para reconhecer esses sistemas, a FAO considera alguns critérios como agrobiodiversidade, sustentabilidade, uso consciente de água e outros recursos naturais, além da importância econômica e histórica para a população local. Isso os torna mais peculiares e complexos do que uma área ou terreno protegidos como patrimônio histórico, como ocorre com as muralhas da China ou as pirâmides do Egito, por exemplo.
Alguns desses locais reconhecidos pela FAO no mundo são:
- O Sistema de Cultivo em Terraço de Pedra na região de terras secas de Shexian na China, que consiste em um sistema agrícola de sequeiro em uma série de terraços de pedra construídos no alto das montanhas. As comunidades locais usam esses terraços para cultivar diversas culturas de grãos e frutíferas e ainda transmitem sabedoria agrícola sobre épocas de semeadura em função época da chuva, além de costumes festivos para comemorar, por exemplo, o Ano Novo Lunar, onde aldeões fazem grandes quantidades de panquecas de milho que são consumidas até o dia 15 do primeiro mês do ano novo.
- Sistema de Cultivo de Chá Tieguanyin de Anxi – China: a árvore de chá tieguanyin é de onde vem uma variedade premiada de chá Oolong, um tradicional chá chinês e, portanto, esta área foi considerada a origem da produção desse chá. Mais de 100 variedades de chá existem nesses terraços, e gerações de experimentação e adaptação por parte dos agricultores ajudaram a melhorar as técnicas de cultivo de chá em todo o mundo. A cultura do chá tieguanyin de Anxi influenciou a sociedade agrícola da região, bem como crenças religiosas, arte e literatura, entre outros.
- Sistema integrado do Lago Biwa e seus arredores – Japão, um sistema que combina pesca tradicional do interior com a agricultura de arrozais, onde tanto o lago quanto os arrozais circundantes alimentam os peixes. Os pescadores desta área usam e aprimoram vários métodos de pesca há mais de 1.000 anos. Além disso, adaptaram a cultura local e as normas sociais para garantir a sustentabilidade dos recursos naturais e a conservação do ecossistema. As organizações de pescadores, historicamente criadas para evitar a competição e proteger a disponibilidade de recursos por meio de técnicas de pesca restritas, continuam existindo hoje.
- Sistema de cultivo de frutas na região de Kyoutou, Yamanashi – Japão, que se baseia em métodos agrícolas adaptativos, como treliças especiais de vinhedos. As treliças do estilo Koshu, adaptadas às altas chuvas e condições úmidas da região, combinadas com grandes videiras espaçadas, permitem que os produtores minimizem os problemas de pragas e controlem o vigor da videira para salvaguardar a produção da uva, que é fundamental para a subsistência rural. Acredita-se que esta região seja o berço do cultivo da uva japonesa, que remonta pelo menos há 800 anos.
Sistemas agrícolas tradicionais no Brasil também atendem critérios da FAO
O primeiro SIPAM no país foi reconhecido pela FAO em 2019. É o sistema “Apanhadores de Flores Sempre-vivas”, da Serra do Espinhaço (MG) é uma das savanas mais biodiversas do planeta. As comunidades chegam a manejar mais de 400 espécies de plantas já catalogadas, incluindo as alimentares e as medicinais, cujos conhecimentos e práticas únicas são desenvolvidas ao longo de gerações para manter os recursos genéticos e melhorar a agrobiodiversidade. Os agricultores locais desenvolveram um sistema que combina coleta de flores, jardinagem agroflorestal, pastoreio de gado e cultivos.
Considerando que o Brasil está no topo da lista dos 18 países megadiversos do mundo, não é por menos que temos que enxergar o nosso potencial e, junto a ele, nossa responsabilidade diante do desenvolvimento sustentável. Nosso foco na preservação de espécies biológicas e manutenção de recursos naturais para as gerações presentes e futuras deve ser prioridade.
Com apoio institucional esses sistemas podem garantir a preservação da biodiversidade
A FAO considera que os sistemas agrícolas tradicionais deveriam estar no centro da atenção dos pesquisadores e tomadores de decisões na inovação e na elaboração e implementação de políticas públicas para a agricultura.
Uma iniciativa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em parceria com as comunidades tradicionais, os povos indígenas, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a FAO Brasil vem relatando experiências sobre os sistemas agrícolas tradicionais brasileiros (SATs). Em sua última publicação em 2019 intitulada Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil, foram relatadas 15 experiências premiadas pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Para garantir a conservação e uso sustentável dos recursos naturais e biodiversidade para a alimentação e agricultura é importante reconhecer e enfatizar o papel histórico e atual dos agricultores tradicionais na geração de inovação em agricultura.
Com a domesticação de diversos cultivos, esses agricultores garantem a conservação e a adaptação das culturas a inúmeras condições climáticas e ambientais, criando a diversificação da base genética da produção agrícola. Dessa forma, eles têm o potencial de assegurar a preservação de espécies ameaçadas de extinção pelo avanço da agricultura moderna ou pelo êxodo rural.