O tema instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o Dia Mundial da Água em 2023 é Acelerando Mudanças – Seja a mudança que você deseja ver no Mundo” e é exatamente essa ênfase que o biólogo e mestre em Ecologia pela USP (Universidade de São Paulo), Glauco Kimura de Freitas atribui ao assunto, quando questionado sobre soluções para o fim das crises hídricas e alcance das metas instituídas para 2033. 

Em entrevista ao Entre Solos, Freitas ressalta a importância da parceria e cooperação entre setor público, privado e sociedade civil para impulsionar projetos e eliminar os riscos iminentes, como a falta de água e a proliferação de doenças. O biólogo possui mais de 20 anos de experiência nos temas da conservação e do manejo da água doce, e em 2020, se empenhou pessoalmente no combate ao fogo no Pantanal, onde ele próprio já morou, coordenando as ações da WWF dedicadas à preservação do cerrado e das águas. Ele também atua à frente dos projetos de ciências naturais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). 

Confira a entrevista. 

 O Brasil viveu recentemente uma crise hídrica. Entretanto ainda há muita abundância de água em algumas regiões. Você acha que as pessoas estão mais conscientes em relação ao consumo de água ou ainda falta essa conscientização? 

As pessoas estão sim mais conscientes. As crises hídricas que afetaram o centro-sul do Brasil desde 2014, 2015 em São Paulo e Minas Gerais, passando pelo triênio 2016, 2017 e 2018 no Distrito Federal, representaram grandes sofrimentos para uma população que não estava acostumada a sofrer racionamento, nem problemas de abastecimento. O Centro-Sul acaba sendo o centro de formadores de opinião do País, então eu acho que isso foi uma dura lição, porém conseguimos extrair resultados positivos. Ou seja, as pessoas estão sim mais conscientes. Isso pode ser visto até no Distrito Federal, em específico, que é uma região que eu conheço mais, onde eu vivi e fui um dos coautores do livro sobre a crise hídrica no Distrito Federal. Lá, a média per capita diminuiu bastante, passando de 179, 180 litros por habitante/dia, para 149 litros por habitante/dia durante esse período e acabou se mantendo de acordo com os esforços de comunicação e de divulgação. Então houve sim essa conscientização.  

O que pode ser feito para que as pessoas utilizem a água de forma racional e sustentável? 

No Brasil, infelizmente a gente está acostumado a premiar os malfeitores e não premiar os benfeitores, ou pelo menos não premiar as pessoas que fazem o bem e essa lógica tem que mudar. Eu acho que os consumidores que demonstram economia de água nas suas casas têm que ser premiados com descontos e tarifas bônus. Mas infelizmente, o que vemos no País, são pessoas que fazem roubo de água, os chamados “gatos”, utilizam água de forma irregular, e a fiscalização muitas vezes não dá conta de chegar nesses lugares e não acontece nada com elas. E aquela pessoa que paga água, que tem hidrometração, que faz controle, faz tudo direitinho, acaba saindo como se fosse uma pessoa “boba”. Então isso tem que mudar. 

É preciso fiscalizar o uso irregular, premiar os que estão fazendo economia. Tem que fazer uma campanha de hidrometração das residências e das casas para individualizar o consumo. Por exemplo, aqueles condomínios que não têm isso e as pessoas pagam cotas fixas de água, acabam punindo os que têm menos água e premiando os que têm mais. A pessoa pensa assim: ‘Já que eu estou pagando, eu vou usar mais.’ Então esse tipo de mecanismo perverso tem que ser revertido para proibir o uso indevido da água e premiar aqueles que já tem boas práticas e que mostram resultados reais. 

Quais são os projetos da Unesco em relação à preservação da água? 

O acesso à água potável e segura e ao esgotamento sanitário são direitos humanos fundamentais e essenciais reconhecidos pela assembleia da ONU desde 2015. Nesse sentido, a UNESCO abraça e segue essa resolução, que instituiu o acesso à água potável e segura e ao esgotamento sanitário como direitos humanos fundamentais. Porém, muito antes disso, em 1971, a UNESCO criou seu programa hidrológico intergovernamental, o PHI, que vem trabalhando nesses mais de 50 anos, vários projetos e ações, que promovem o uso racional da água, a necessidade de combater os efeitos climáticos extremos, a adaptação aos eventos climáticos extremos e também ao esgotamento sanitário. Então o PHI é o nosso programa chave pra água dentro da UNESCO.

E especificamente na UNESCO Brasil, hoje temos um programa que é digno de nota, que é um programa de ciência cidadã na bacia hidrográfica do Rio Doce. Nesse programa, por meio da ciência, estamos buscando capacitar as comunidades que foram atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, que acabou atingindo todo o Rio Doce. Estamos capacitando técnicos, lideranças ambientais para que tenham conhecimento científico, e dando capacidade para elas próprias monitorarem a qualidade da água e terem condições de tomarem decisões sobre a água, afinal de contas o conhecimento é libertador. Então é uma abordagem de troca onde levamos conhecimento para os leigos e os leigos trazem seu conhecimento empírico e cultural sobre a água, histórico e tradicional para a ciência e essa troca é muito rica. Isso é a base da ciência cidadã que nós estamos fazendo lá na bacia do Rio Doce. Até o momento já capacitamos 35 agentes ambientais e estamos capacitando mais 40 agentes, em parceria com o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Doce e apoio da Fundação Renova. 

Você acha que faltam investimentos em pesquisa e tecnologia para o aproveitamento dos recursos hídricos no Brasil? 

Sim, com certeza faltam. Segundo o relatório de Ciências da UNESCO que foi lançado em 2021 com recorte brasileiro, entre 2015 e 2017, os investimentos com pesquisa no Brasil tiveram uma queda de 16%. Então o Brasil está investindo muito pouco em Pesquisa e Desenvolvimento, o que representa algo em torno de 1% a 1,2% do PIB nacional. É muito pouco pelo potencial que temos, então isso se reflete na pesquisa e desenvolvimento para a área de recursos hídricos. Queria ressaltar aqui a importância de investimentos não só em pesquisa e desenvolvimento, mas também em tecnologia social. Eu sempre gosto de bater na tecla de que às vezes a gente não precisa desenvolver uma ciência ultra mega tecnológica. Às vezes tecnologias simples e baratas são muito eficazes e precisam de investimento.  

Que investimentos você considera que devem ser feitos pelo poder público brasileiro? 

Segundo dados do Banco Mundial, precisamos mais do que dobrar os investimentos em água e esgotamento sanitário, se quisermos alcançar a universalização do saneamento no Brasil e no mundo até 2033. Ou seja, o Brasil precisa ser muito ambicioso. Dobrar o montante de investimento para ter a universalização do saneamento. No caso do Brasil nós temos o marco do saneamento, que começa a engrenar a partir de agora e espera-se que a gente consiga ver grandes transformações no médio prazo. Mas além disso, eu acho que o poder público deve investir em tecnologias sociais. Não dá pra ficar aguardando grandes obras de infraestrutura ficarem prontas para levar água para as casas e ter saneamento básico para 100 milhões de pessoas. A gente sabe que só isso não vai ser suficiente. Então temos que investir paralelamente nas tecnologias sociais. Sistemas descentralizados de tratamento de esgoto como fossas secas, ecofossas em áreas rurais, uso de áreas úmidas, plantas aquáticas que funcionam como miniestações de tratamento de esgoto naturais, soluções baseadas na natureza e sistemas descentralizados como captação de água de chuva. 

Você acha que a política nacional de recursos hídricos atende a necessidade das populações mais carentes? 

Na verdade, se buscarmos na legislação, sim. Ela é descentralizada e participativa, ou seja, a política nacional de recursos hídricos abre espaço para a participação social. Qualquer pessoa pode participar dos comitês de bacia que são colegiados tripartites paritários, onde participam 1/3 do governo, 1/3 da sociedade privada e 1/3 da sociedade civil. Então isso é muito importante e também nós temos mecanismos de participação social, além dos comitês, nos conselhos de recursos hídricos, que abrem espaços para as populações carentes participarem da gestão. O que falta na verdade, é um fortalecimento das populações mais carentes, no sentido de terem conhecimento desses espaços de participação para que elas possam pleitear suas necessidades junto aos comitês. Por exemplo, tem comitês de bacias que fazem cobrança do uso da água e a cobrança tem que ser reinvestida na própria bacia. Nesse sentido, se a sociedade civil desempenha um papel fraco, os recursos da cobrança não vão ser reinvestidos nos pleitos que a sociedade quer. Então é preciso fortalecer os espaços de participação e aumentar a representação da sociedade civil nesses espaços.  

Na sua opinião, o que pode ser feito de forma prática para reverter as crises hídricas no território brasileiro? 

Em primeiro lugar, a água tem que se tornar uma pauta prioritária nacional, estadual e municipal. Não dá mais pra colocar água e saneamento como pautas meramente eleitoreiras e oportunistas. Eu acho que essa pauta tem que ser prioridade. De forma prática, eu acho que a gente tem que ter uma política muito séria de preservação das nascentes e mananciais das bacias hidrográficas. Veja o caso da bacia do Rio Doce, que teve ali um derramamento de ferro pelo rompimento da barragem de Fundão, e aos poucos a bacia vai se recuperando porque as nascentes e afluentes dos tributários do Rio Doce vão se depurando e renovando as águas. 

Então, nascentes e sistemas de cabeceiras são essenciais para manter a saúde e a qualidade da água dos rios. As soluções baseadas na natureza têm que se tornar uma prioridade para conseguirmos ter a resiliência necessária para evitar crises hídricas de desabastecimento entre outras coisas. Acho também que a gente tem que usar as tecnologias sociais como captação de água de chuva e sistemas descentralizados. Tudo isso são formas que a gente consegue colocar vários “ovos em diferentes cestas”. Porque hoje, o nosso sistema é muito dependente de grandes reservatórios, ou seja, a gente coloca todos os ovos em uma cesta só, e na época de estiagem os reservatórios secam e as pessoas não têm água. Já em épocas de muita chuva os reservatórios enchem e têm que abrir o vertedouro. E às vezes, alguns até se rompem e causam verdadeiras tragédias nas cidades que estão abaixo dos reservatórios. Então, é preciso variar esse sistema de segurança hídrica, descentralizando e mantendo os reservatórios. 

 O setor privado também pode contribuir com esse trabalho de conscientização e com impulsionamento de projetos para o bom aproveitamento da água? De que forma? 

Sim, o setor privado tem um papel fundamental para impulsionar bons projetos de aproveitamento da água. Primeiro que o setor privado, ao investir nessa agenda, está investindo no seu próprio negócio. Não dá mais pra falar que investimento em água pelo setor privado é filantropia ou doação. Isso é investimento. As empresas realmente têm essa consciência e estão investindo como forma de diminuir o risco hídrico das suas operações e de todas as suas cadeias produtivas. Tendo em vista essa premissa de que é um investimento estratégico, além dos recursos financeiros, traz recursos humanos como inovação, experiência, agilidade, mais poder executivo dos projetos e pode impulsionar bons projetos com o setor público e com entidades da sociedade civil. 

O que a população pode fazer para juntar forças com os poderes público e privado para impedir o avanço dessas crises hídricas? 

A população também pode juntar forças entre o poder público e privado. À medida que ocupa os espaços de participação de forma qualificada e também faz a ponte entre empresa e poder público, as organizações da sociedade civil podem desempenhar esse papel de unir. Neste ano de 2023, o tema do Dia Mundial da Água fala sobre parcerias e cooperação para água. O ODS 6 está super atrasado, com risco enorme de não alcançar suas metas e somente por meio das parcerias e cooperações a gente vai conseguir virar esse jogo. 

 Quais são os riscos iminentes que o Brasil e o mundo estão sujeitos, caso a população não se preocupe com o consumo consciente da água? 

Os riscos nós já estamos presenciando. No caso de grandes estiagens recorrentes, as pessoas passam a sofrer racionamento e aí tem uma série de consequências em cadeia, afetando a ida ao trabalho, à escola e isso coloca em risco o direito humano, à água e ao racionamento. No caso de muita água, como vimos nos nos três últimos anos de La Niña no Brasil, que foram muito chuvosos, vimos a quantidade de deslizamentos, enchentes e inundações que ceifaram vidas, deixaram as pessoas doentes e tudo isso são riscos iminentes que o Brasil e o mundo estão sujeitos se não for tivermos uma boa gestão da água e do clima. Não dá mais pra pensar só em água e saneamento sem agregar a agenda climática, porque é justamente no ciclo climático que as agendas se materializam. Precisamos trabalhar muito seriamente em uma agenda de água e clima.